Igreja da Misericórdia de Évora
A principal característica dos programas iconográficos setecentistas realizados para as igrejas da Misericórdia é a elaboração de um discurso complexo, combinando as sete obras de Misericórdia Corporais com as sete Espirituais, de maneira a expressar os valores morais e teológicos da misericórdia cristã.
Com o mesmo sentido de unidade, variedade e complementaridade de uma peça de oratória, a narrativa, fruto da ligação de todas as partes do discurso, persegue um ideal de totalidade, onde cada uma das imagens contribui para a coerência do discurso visual. A estrutura do discurso, como muito da produção exegética do período, utiliza um método comparativo, escolhendo passagens de Velho e do Novo Testamento, de maneira a corroborar o sentido histórico e predestinado da mensagem de Jesus Cristo.
A melhor oficina de pintores decoradores da época, liderada por António de Oliveira Bernardes, realizou uma importante sequência de programas iconográficos em azulejos para as igrejas da Misericórdia de Estremoz, Évora, Grândola e Viana do Castelo.
Apesar de algumas alterações, o programa da Misericórdia de Évora conserva, no essencial, um programa exemplar dessa produção, com o aliciante de estar bem documentado e somar aos azulejos uma campanha de pinturas a óleo, essa última, como vimos, realizada por um pintor-irmão, Francisco Lopes Mendes que, seguindo as indicações da mesa da confraria, deveria representar as Obras de Misericórdia Corporais através de episódios da Sagrada Escritura.
Com o apoio do Arcebispo Sebastião da Gama, ao tempo Provedor da Misericórdia de Évora, a obra foi supervisionada pelo bispo auxiliar, D. Diogo da Anunciação Justiniano, quem na verdade governa os destinos do arcebispado, na contínua ausência do Arcebispo, em Lisboa, chamado pelos negócios do reino.
Como bispo auxiliar de Évora e frade Lóio, D. Diogo Justiniano já havia acompanhado a encomenda dos azulejos para o convento da Congregação de São João Evangelista em Évora, pintados por António de Oliveira Bernardes, entre 1710 e 1711, iniciando uma relação de íntima colaboração na organização dos programas iconográficos adaptados à arquitectura.
É por esses anos que a Confraria de Évora, respondendo a uma solicitação do Cardeal Infante D. Henrique, ao tempo arcebispo de Lisboa, ganha maior relevância e assume novos compromissos na administração de instituições de assistência da cidade, com a atribuição da gestão do Hospital do Espírito Santo e da Casa de São Lázaro, em 1567.
Nascida com vocação para apoio complementar do sistema judicial, de cuidado com os presos, do qual detinha monopólio exclusivo, a comunidade laica das misericórdias vai progressivamente acrescentar ao ideário evangélico crescentes responsabilidades nas tarefas na gestão dos hospitais, nos cuidados prestados aos doentes, na organização de boticas e farmácias, no auxílio à criação dos órfãos e enjeitados e ao casamento das jovens donzelas órfãs.
António de Oliveira Bernardes era natural de Beja, e naturalmente procurou fixar-se em Lisboa, por volta de 1680, onde se casou com a filha de Francisco Ferreira de Araújo, o reputado pintor de têmpera de sua majestade. Na companhia do seu cunhado José Ferreira de Araújo, seriam responsáveis pela direcção de uma oficina com vários colaboradores, na execução de tectos de brutescos, pinturas de telas e azulejos, e estariam particularmente conscientes da forma de organização de um discurso coerente, tanto a nível ornamental quanto iconográfico.
Também para Évora, em 1696, António de Oliveira Bernardes executou as pinturas para a nave da igreja de Santa Clara que, atualmente, em diferentes fases de restauro, encontram-se expostas na nave da Sé de Évora. Nessas obras, reconhecemos as figuras alteadas, com expressões vigorosas e patéticas, a correção do desenho e uma cuidada estruturação do espaço que indicam uma sólida cultura pictórica, apoiada numa leitura pessoal do classicismo seiscentista francês. Mais do que qualquer outro pintor, foi Bernardes quem aproximou as campanhas figurativas em azulejo da pintura erudita de cavalete.
O programa de imagens desenvolvido para a igreja de Évora pretende compor uma espécie de manual do perfeito irmão da misericórdia, escolhendo para modelos Jesus e Maria, uma formulação recorrente, e em tudo semelhante aos intentos que o historiador Francisco de Santa Maria utilizou na elaboração de um sermão para as festas da irmandade, celebrada em Lisboa, em 1684:
“Será, pois, hoje, o meu assumpto, para que satisfaça a tanto empenho, descrever e compor um perfeito irmão da misericórdia, sempre a vista dos dous espelhos, ou exemplares, Jesus e Maria, propostos nos Evangelhos da sesta & da Dominga.”
Para lermos esse espelho, essa exposição das virtudes da misericórdia aos irmãos, podemos iniciar a leitura do programa de imagens a partir da entrada da igreja, no subcoro, onde ainda subsistem as cartelas com os dísticos originais da campanha realizada pelos Oliveira Bernardes.
Os versículos escolhidos não falam das Obras, mas da Misericórdia na sua abrangência mais profunda, e assinalam o carácter dúplice, uma espécie de contrato promessa com Cristo, associando as Obras de Misericórdia com a Salvação, numa mensagem dirigida aos irmãos da Santa Casa: “Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia” (Mateus, 5: 7) e “Bem-aventurado o que cuida do necessitado e do pobre; o Senhor o livrará no dia mau.” (Salmos, 40: 2).
Os outros quatro painéis figurativos dessa quadra representam Santos e Santas eremitas, uma obra de Policarpo de Oliveira Bernardes, filho e principal colaborador de António, e estão coroadas, na parte superior, com dois emblemas que alertam para a importância de nos prepararmos para a vida eterna, lembrando o desconhecimento da hora da morte, com a representação de um esquife e o versículo “Vós, pois, estai preparados [para a morte]” (Lucas, 12: 40), e para a necessidade de não nos preocuparmos com os bens materiais, com a representação de flores de lírios, e o versículo “Considerai os lírios do campo [como eles crescem; não trabalham, nem fiam]” (Mateus, 6: 28).
Santo Antão, abade, São Paulo, eremita, Santa Taís e Santa Maria Egipcíaca, isolados do mundo, em oração, ignorando as necessidades mais básicas do corpo, como a alimentação e o vestuário, são exemplos de penitência, de remissão das faltas e de cuidado com o espírito.
Essa é uma pobreza virtuosa, de que fala António Vieira, porque há que distinguir entre a pobreza que é forçada, a pobreza miserável, e a pobreza “que é virtude, é a pobreza voluntária, com que se desprezam todas as cousas do mundo”.
Mas praticar a penitência é também uma importante Obra de Misericórdia como nos explica o padre João Fonseca:
De três maneiras podemos exercitar estas obras de misericórdia com os defuntos; a primeira, e principal, é com o Sacrifício da missa, dizendo e mandando dizer muitas missas por eles; a segunda, com orações; a terceira, com obras penais, como são jejuns, penitências, esmolas peregrinações, e outras semelhantes, e ganhando, por eles, indulgências.
É também para ganhar indulgências para as almas do purgatório, que os confrades da Misericórdia de Évora, na procissão do Enterro do Senhor, são incentivados a penitenciarem-se cobertos, sem a identificação pública, considerada vanglória.
De maneira inusitada, em 1737, passadas apenas duas décadas, cinco das sete Obras de Misericórdia foram repintadas pelo pintor José Xavier de Castro, mantendo-se apenas duas telas de Francisco Lopes, com a representação de Dar de comer a que tem fome, através do episódio em que a viúva de Sarepta alimenta o profeta Elias e Dar de beber a quem tem sede, pelo auxílio de Rebeca a Eliezer, aos seus homens e camelos, na sua busca de uma esposa para Isaac.
A primeira hipótese de investigação é que os restantes episódios escolhidos para serem representados correspondessem a passagens do Antigo Testamento, seguindo uma proposta codificada pelo padre Manuel Fernandes, que elenca, como pré-figurações alegóricas da Virgem como Mãe de Misericórdia, exactamente a Viúva de Sarepta e Rebeca, a esposa de Isaac, os episódios representados por Francisco Lopes Mendes.
Para os restantes Obras de Misericórdia Corporais, o padre Manuel Fernandes sugere a costureira Tabita que vestiu as viúvas da cidade de Jope; a Rainha que visitou Baltasar enfermo; Sara, esposa de Abraão, que acolheu os peregrinos; Míriam, que auxilia os seus irmãos, Moisés e Arão, a libertar o povo de Deus da servidão do Egipto e a devota Rispa que guardou o corpo de seus filhos, até serem sepultados.
É também possível perceber que essa recorrência narrativa também funciona em Évora, de maneira mais alargada, de forma a associar Taís e Santa Maria Egipcíaca com a Virgem Maria. Essa mesma intenção tipológica, de articulação entre o Velho e o Novo Testamento, dividida entre feminino e masculino, e presidida pelas figuras do Cristo e da Virgem, está presente na organização da série de gravuras Sylva Anachoretica, incisa por Boëtius Adams Bolswert a partir da obra de Abraham Blommaert, que serviu de modelo para os quatro santos penitentes do sub-coro.
Provavelmente, por não serem histórias bíblicas facilmente identificáveis, foi solicitado ao pintor eborense José Xavier de Castro, que repintasse cinco dos sete episódios das Obras de Misericórdia Corporais, com representações tradicionalmente associadas aos programas das Misericórdias, como por exemplo na obra Remir os captivos.
Com tradição na representação das Obras Corporais, a redenção dos cativos é representada por uma transação comercial, à volta de uma mesa, liderada pelo provincial trinitário, com o chapéu e as suas tradicionais vestes brancas, que finaliza a operação de resgate dos escravos cristãos das mãos dos chefes muçulmanos, identificados por sumptuosos turbantes.
A escolha desse momento corresponde a tradução exacta dos termos do acordo alcançado com o rei D. Sebastião, em 1561, que restituiu a supervisão das questões religiosas da libertação dos cristãos escravizados à Ordem da Santíssima Trindade, depois do afastamento provocado pela criação do Tribunal da Redenção dos Cativos, por volta de 1460. A letra do acordo estatuía que sempre que se realizasse um resgate geral fosse requerido, ao Provincial da Santíssima Trindade, a nomeação de dois religiosos trinitários para juntamente com o oficial do tribunal conduzirem as negociações. As Misericórdias foram sempre chamadas a contribuir para esses resgates gerais, uma colaboração normalmente agradecida de forma pública com procissões que incluíam no itinerário os templos das confrarias de Misericórdia.
Na parte inferior, nos azulejos, desenvolve-se a representação da Vida de Jesus, em meio a uma arquitectura monumental, com a individualização dramática dos afectos na pose e no rosto de cada um dos personagens com vestes clássicas. Para além da qualidade do pincel de António de Oliveira Bernardes, os azulejos azuis e brancos demonstram uma revalorização da vertente das Obras Espirituais no programa das Misericórdias, sublinhando esse compromisso primitivo e derradeiro com a salvação das almas. Os azulejos da Misericórdia de Évora revelam António de Oliveira Bernardes como um bom intérprete de narrativas alegóricas em que a imagem se coaduna com as palavras sagradas, cuidadosamente transcritas nas cartelas, como afirmação da importância e da verdade das palavras divinas.
Em complemento a esse discurso alegórico, no embasamento dos grandes painéis figurativos, as obras de Misericórdia Corporais foram pela primeira e única vez objecto de uma representação emblemática, realizada por um colaborador da oficina, o pintor Teotónio dos Santos. Além da fórmula proposta ser inédita, ao conjunto da Misericórdia de Évora acresce ainda o interesse de propor uma descrição circunstanciada das actividades institucionais, muito para além da tradicional representação das sete obras de Misericórdia Corporais.
Nos azulejos, os emblemas figuram de maneira metafórica, por exemplo, o cuidado no transporte dos doentes através da representação de uma palmeira caída no chão rodeada com pedras;
A misericórdia para todos através da figura de uma romã; o cuidar dos órfãos por uma árvore cuidadosamente podada;
o casar as solteiras com a representação do jardineiro que fixa as plantas trepadeiras ao tronco das árvores; e o vestir os pobres através da aranha que tece uma teia.
O programa era mais extenso, mas o conjunto foi mutilado com a introdução do cadeiral dos mesários, provavelmente na primeira metade do século XIX.
Na maior parte dos casos, o simbolismo foi construído a partir da imagem de uma árvore ou plantas de um jardim, metáfora sugerida pelo Livro dos Salmos [1: 1-3], onde os bem-aventurados são comparados à uma árvore que frutifica e prospera.
Acompanhados por um lema subdividido em duas frases em latim, escritas propositadamente para esses emblemas, o autor dos emblemas adaptou algumas figuras de emblemas consagrados, e se conhece uma gravura que serviu de base para a representação da preparação dos remédios na botica, retirada de uma das mais conhecidas séries de emblemas jesuítas.
Essa linguagem simbólica está profundamente enraizada na prática didáctica jesuíta, onde funciona como exercício de memória, para ensinar a gravar ideias ou conceitos chaves. O decifrar do símbolo – no caso de Évora, bastante simples, uma vez traduzidas as frases latinas – é por sua vez um exercício de compreensão prazerosa, incitando a um jogo intelectual que está na raiz de boa parte da produção poética do período.
Ao contrário do que poderíamos supor por se tratarem de irmandades laicas, os programas iconográficos das igrejas das Misericórdia foram frequentemente decididos pela mais alta hierarquia eclesiástica, que definiu as linhas orientadoras e as ideias doutrinárias que deveriam conformar o tema da misericórdia cristã. Nos melhores casos, os pintores, conscientes dos objectivos do discurso narrativo utilizado, contribuíram decisivamente para a coerência da narrativa e pela adequada expressão pictórica, e ainda para a assunção da eficácia do discurso, seja nas suas vertentes mais singelas, seja na organização de discursos mais elaborados.
A começar pela intervenção de repintura de alguns dos episódios em Évora, as intervenções nos programas das Misericórdia, na segunda metade do século XVIII, sugerem uma predilecção por um discurso narrativo que reserva para as imagens um papel de eficácia didáctica. Será o caso dos azulejos da Misericórdia de Arraiolos, realizados em 1753, onde as Obras acompanham um conjunto de Virtudes, ou ainda na Misericórdia de Vila Franca de Xira, em forma de diálogo, com Cristo como professor do conjunto completo das Obras corporais e espirituais, com as frases latinas, que saem da boca do Salvador a sugerirem as referências mais eruditas.
A eficácia do discurso depende da coerência interna da narrativa, articulada em função da atribuição de um papel específico para as imagens e para as palavras, onde se procura descrever para os irmãos o sentido cristão das Obras, e a contribuição decisiva para a salvação das suas almas, o verdadeiro ponto central de todo o discurso.