Igreja da Misericórdia de Évora
A confraria da Misericórdia de Évora, instituída em Dezembro de 1499, apenas um ano depois da congénere de Lisboa, insere-se na primeira vaga da criação e difusão de instituições desse género, sob o patrocínio da Casa Real. Como documenta o primeiro livro dos irmãos, a iniciativa partiu de rainha D. Leonor, e entre os primeiros membros da nova confraria, que se pretendia transversal à toda a sociedade eborense, encontravam-se o rei D. Manuel, a rainha D. Maria, D. Afonso, Bispo de Évora, o cronista e poeta Garcia de Resende, o sapateiro Vasco Lourenço, o ourives Fernão Lopes e o dourador Diogo Rodrigues, entre muitos outros habitantes da cidade.
A primeira sede da Misericórdia foi a capela de São Joãozinho, junto ao convento de São Francisco e ao Paço Real, e fazia parte de um complexo edificado que sucessivas obras transformaram num magnífico pólo de expressão do poder régio na cidade.
Assim, quando entramos no atual edifício da igreja da Misericórdia, estamos num segundo momento da vida da Irmandade, num período marcado pela transferência da confraria para o edifício do antigo convento feminino da Ordem de Malta, vendido aos irmãos, pelo infante D. Luís, por um preço inferior ao da aquisição, em 1551.
A mudança exigiu obras de adaptação dos antigos Paços de D. Fernando e da efémera casa conventual, contratualizadas pelo Provedor, D. Garcia de Meneses, com o mestre pedreiro Manuel Pires, conhecido pela direção de importantes obras do Cardeal D. Henrique, conforme indica a documentação publicada por Vítor Serrão.
Essas obras, concluídas e quitadas em 1555, não devem ter sido de grande monta, e apenas uma década depois, a pequena igreja foi ampliada ao comprimento, para poder acolher mais irmãos, como atesta a autorização concedida, em 1566, pelo arcebispo D. João de Melo, para a celebração de missas no novo altar do templo da Misericórdia.
É por esses anos que a Confraria de Évora, respondendo a uma solicitação do Cardeal Infante D. Henrique, ao tempo arcebispo de Lisboa, ganha maior relevância e assume novos compromissos na administração de instituições de assistência da cidade, com a atribuição da gestão do Hospital do Espírito Santo e da Casa de São Lázaro, em 1567.
Nascida com vocação para apoio complementar do sistema judicial, de cuidado com os presos, do qual detinha monopólio exclusivo, a comunidade laica das misericórdias vai progressivamente acrescentar ao ideário evangélico crescentes responsabilidades nas tarefas na gestão dos hospitais, nos cuidados prestados aos doentes, na organização de boticas e farmácias, no auxílio à criação dos órfãos e enjeitados e ao casamento das jovens donzelas órfãs.
Mais uma vez, as dimensões da igreja revelavam-se insuficientes para a importância institucional que se pretendia para a Confraria, e houve necessidade de planear uma reedificação, que principia em 1574, e configurou o templo na forma como o conhecemos atualmente, com prospecto altaneiro, nave única, sem colunas internas, coberto por uma abóbada contínua, de maneira a adequar-se às novas directivas da Contrarreforma.
A realização dessas vultosas obras veio por fim à possibilidade de uma nova transferência da sede da Misericórdia, hipótese discutida pela direção, pela primeira vez, em 1564. A reunião da mesa, presidida pelo Provedor, D. Garcia de Meneses, que se realizou em 14 de abril de 1574, pôs definitivamente de lado a ideia de mudança para as imediações da Porta Nova, em parte para evitar a perda do capital investido nas obras que já se acham em execução
Como parte da organização burocrática desse tipo de empreitadas, uns meses depois, um alvará, datado de 10 de agosto de 1574, concedido por D. Sebastião, provavelmente como resposta à uma solicitação da Misericórdia de Évora, ordenava que o corregedor da comarca fornecesse os artífices necessários para que se realizassem as obras da igreja e, mais importante, impedia que os trabalhadores pudessem ser transferidos para outros estaleiros.
O objetivo de criar um templo de nave única, com um auditório desimpedido, próprio para a realização de prédicas regulares, foi um dos grandes desafios colocados aos arquitectos e engenheiros da época, e a solução adoptada, com a criação de poderosos contrafortes, um plano modelar particularmente eficaz quando se tratava da reconstrução de edifícios mais antigos, que se mantinham em funções enquanto as obras decorriam no exterior.
A proposta de ligação entre a sacristia e o coro alto através de um corredor exclusivo, separado da nave, e também a existência de uma plataforma elevada defronte da capela-mor, sugerem a intervenção de Afonso Álvares, arquitecto-mor da comarca do Alentejo, autor do projeto para o convento de Santa Helena do Monte Calvário e, provavelmente, também do projeto de reconstrução da Igreja de Santiago, obras onde foram utilizadas soluções idênticas.
No caso da Misericórdia de Évora, o corredor-escada de acesso ao coro alto envolve a muralha romana, que já se encontrava incorporada ao antigo edifício dos Paços de D. Fernando, antes do edifício ser utilizado como sede do mosteiro feminino da Ordem de Malta.
Todas essas iniciativas e o apoio constante dos Arcebispos não foi suficiente para o bom andamento das obras, que decorreram vagarosamente, ao longo de mais de duas décadas, em parte prejudicadas pela crise política provocada pela derrota de Alcácer Quibir, em 1580.
A adição final de uma imponente cimalha em granito, de ordem dórica, corresponde às propostas de articulação da linguagem arquitetónica em voga na última década do século XVI, e devem estar relacionadas com soluções semelhantes desenvolvidas pelo arquitecto Pero Vaz Pereira para a igreja paroquial de São Mamede, para a igreja de Santiago de Évora e, ainda, para a Igreja de Nossa Senhora da Graça do Divor.
Além de constituírem a linguagem própria da arquitetura codificadas pelos tratados, as ordens clássicas são portadoras de uma mensagem simbólica, já que, segundo as ideias do influente tratado de Sebastiano Serlio, a ordem dórica havia sido concebida pelos Romanos ao erguerem templos em louvor a Júpiter, Marte e Hércules, e eram consideradas, depois do advento do Salvador, adequadas para sublinhar o valor heróico e humilde de Cristo e dos santos mártires.
Pero Vaz Pereira, que depois assumiria o cargo de arquitecto do Duque de Bragança, está associado a várias obras desenvolvidas pelo arcebispo de Évora, sendo o responsável pela direção importante estaleiro do mosteiro de Scala Coeli, dos monges cartuxos, com desenho do italiano Vincenzo Casale.
Em 1593, confirmando a conclusão das obras da Igreja da Misericórdia, o arcebispo D. Teotónio de Bragança autoriza a celebração de missas no altar do Santo Cristo do cruzeiro da igreja da casa, “ora novamente feito levantado”, e três anos depois, o mestre pedreiro Mateus Neto realiza o lajeamento da igreja.
Em 1593, confirmando a conclusão das obras da Igreja da Misericórdia, o arcebispo D. Teotónio de Bragança autoriza a celebração de missas no altar do Santo Cristo do cruzeiro da igreja da casa, “ora novamente feito levantado”, e três anos depois, o mestre pedreiro Mateus Neto realiza o lajeamento da igreja.
Embora se desconheçam as origens da celebração da procissão noturna do Enterro do Senhor, que integra as festividades da Paixão de Jesus, que ainda hoje os irmãos da Misericórdia de Évora celebram, esta esteve desde sempre relacionada com a existência de uma pequena ermida da Vera Cruz, que depois ficou incorporada ao convento de Santa Helena do Monte Calvário.
A enorme importância simbólica da procissão, que reconstitui ritualmente uma obra de Misericórdia Corporal, o cuidado com o enterro dos mortos e, ao mesmo tempo, relembra o compromisso que une os irmãos ao Salvador, levou a que, nos princípios do século XVIII, se optasse pela reconstrução da capela do Santo Cristo, que seria decorada com custosos mármores embutidos. Após as obras de pedraria, de mármores embutidos, a confraria eborense contratou, em 1703, o mestre entalhador Inácio Carreira, que se comprometeu a realizar o novo retábulo em talha dourada, pela quantia de 130 mil réis.
Coube ao mestre apresentar o desenho do retábulo, que segue o vocabulário então em voga, com colunas torsas decoradas com videiras carregadas de cachos de uvas, fechado na parte superior com arquivoltas espiraladas. O fundo da tribuna é trabalhado com o baixo relevo de raios resplandecentes, intensificando o dramatismo e a espiritualidade da imagem da crucificação de Jesus.
Os pintores douradores Manuel da Maia e Bernardo Luís foram os responsáveis pelo douramento do retábulo, enriquecendo o discurso escultórico com a diversidade da pintura que diferencia cada elemento, seja pelo contraste dos acabamentos – brilhante ou fosco -, seja pela adição de reflexos verdes e vermelhos, ou ainda pela carnação dos anjos, que sustentam uma cartela com os símbolos do martírio de Jesus.
O sucesso da empresa e o substancial apoio do novo arcebispo de Évora, D. Simão da Gama, que entre os anos de 1705 e 1716, desempenhou as funções de provedor da Misericórdia, foram decisivos para a continuidade do projecto de renovação, que ambiciosamente viria a substituir por completo os restantes retábulos da igreja, sobrepondo-se também às pinturas murais da nave. Nesta empresa, a nova fachada em talha dourada e o programa iconográfico expresso nas pinturas e nos azulejos definiram a unidade do espaço interior, criando uma obra articulada em contínuo, desde a entrada até o retábulo principal.
O modelo decorativo, já com tradição nos templos de Lisboa e largamente implementado em Évora, durante o arcebispado de Frei Luís da Silva Teles, articulava a talha dourada com os azulejos e as telas, formando um conjunto em que os limites anteriormente estabelecidos para as disciplinas da arquitetura, da pintura e da escultura eram extravasados por uma poética das materiais nobres, do trompe-l’œil e das alusões simbólicas.
O plano já estava perfeitamente definido quando da celebração, em 1710, do contrato com experiente Francisco da Silva, escultor e entalhador estabelecido em Évora:
…se contrataram com o dito Francisco da Silva para haver de o mesmo fazer, de obra entalhada, a frontaria da capela maior da igreja da dita Santa Casa e seus altares colaterais, até ao soco da abobada, segundo o risco maior e mais levantado na folha que para a mesma obra esta feito, fazendo ele dito Francisco da Silva, e cobrindo de entalhado, os lados da dita igreja, do friso donde começam os arcos da abobada até o capitel de mármore preto da capela do Santo Cristo, entrando nesta obra ou deixando em ela sem entalhar o claro de dez palmos de altura em que se há de pintar as Obras da Misericórdia, e assim mais será obrigado ele, dito Francisco da Silva a fazer duas colunas em cada capela das tais, além de duas figuras que há de ficar nos lados da capela maior, de grandeza que a obra o permitir…
O imponente revestimento de talha dourada custou aos cofres da irmandade a considerável soma de 4000 cruzados, numa demonstração de que não se pouparam meios para a dignificação do templo da irmandade. A nova igreja apresenta-se aos fiéis uma verdadeira fachada dourada, agregando três retábulos: o de São João Baptista, do lado do Evangelho; o de São Miguel, do lado da Epístola; e o central, dedicado à Nossa Senhora da Visitação, invocação que marca a festa da Irmandade, no dia em que os irmãos se reúnem para as eleições da direção. A sumptuosa continuidade decorativa do espaço interior, uma das linhas de força do projeto, prossegue nas molduras imponentes que se estendem pelas paredes laterais da nave, onde as telas com as Obras de Misericórdia Corporais estão separadas por vigorosos atlantes.
A individualização de elementos escultóricos, sem ser exclusiva do trabalho de Francisco Silva, é sem dúvida a principal característica da obra, com a inclusão de querubins e anjos tenentes realçados posteriormente com carnações. Os fantasiosos atlantes das pilastras, com cestos ou plumas sobre a cabeça, reforça o sentido simbólico de uma arquitectura vibrante de alusões ao paraíso celestial.
A execução assegurou à oficina de Francisco da Silva um sólido percurso artístico de âmbito regional, e sucedem-se as encomendas: o retábulo da ermida de São Vicente do Pigeiro, o retábulo da capela-mor da igreja de São Marcos do Campo, em Monsaraz, o retábulo da capela-mor da igreja do Convento de Santa Catarina de Sena, e os cinco retábulos para as capelas que marcam os passos da Via Crucis na Vila de Estremoz.
Seguindo uma prática da casa, a Misericórdia de Évora, para a campanha de pinturas, privilegiou um artista eborense, Francisco Lopes Mendes, que em finais de 1714, finalizou o grande painel da Nossa Senhora da Misericórdia, por ordem da mesa colocado no ático do grande frontispício dourado.
Satisfeita com o trabalho, a mesa decide-se pela execução das telas da nave, com as obras de Misericórdia Corporais expressas através de episódios bíblicos, escolhidos segundo indicações do escrivão da Misericórdia:
Nesta mesa de assentou que, do dinheiro que se recebe por esmola da tumba, se mandasse apainelar a Igreja e se pintasse em os sete quadros, as sete obras de Misericórdia corporais, simbolizadas em sete passos da escritura que ao senhor escrivão melhor parecer. E que o painel de Nossa Senhora da Misericórdia que esta mesma mesa tinha mandado fazer para o frontispício da face que está sobre a capela-mor, se pregassem o quadro, de sorte que Dia de Reis aparecesse ao povo e ficasse a frontaria das capelas livre de andaimes, o que com efeito se fez, de que fiz este termo que assino com os mais Irmãos da mesa.
No ano seguinte, o pintor continua os trabalhos e recebe um adiantamento pelos painéis que estava realizando para os três altares, dos quais chegaram até nós a grande tela representando a Visitação, e um São Miguel libertando as almas no Purgatório.
Na Visitação, tela central do grande retábulo, o pintor eborense segue de muito perto uma tela com o mesmo tema, que o já falecido pintor Bento Coelho realizara, por volta de 1690, para a Igreja Matriz de São Bartolomeu, em Vila Viçosa, numa demonstração do prestígio que as obras do antigo pintor régio ainda mantinha em Évora, onde foi agraciado pelo patrocínio do anterior arcebispo, Luís da Silva Teles, para quem realizou as telas para a nave do Mosteiro de Santa Helena do Monte Calvário e para o retábulo da capela-mor de Santo Antão.
Apesar de alguma ingenuidade na composição, Francisco Lopes Mendes é um pintor atento aos novos valores plásticos veiculados pelas melhores oficinas de Lisboa, preferindo um delineamento seguro das figuras e o registo de costumes quotidianos, como no caso de um grupo que, ao lado das muralhas da cidade de Sarepta, aquece um pão em uma frigideira no episódio da vida do profeta Elias.